Fernando Pessoa (seleção de poemas)

12/09/2013 19:56

FERNANDO PESSOA E SEUS HETERÔNIMOS

(Uma antologia, por Milena)

 

 

1.      Alberto Caeiro

      Meu olhar

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

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     O guardador de rebanhos

Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

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Pouco me importa.
Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me importa.

 

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Há Metafísica bastante em não pensar em nada. 
O que penso eu do mundo? 
Sei lá o que penso do mundo! 
Se eu adoecesse pensaria nisso. 
Que idéia tenho eu das cousas? 
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? 
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma 
E sobre a criação do Mundo? 
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos 
E não pensar. É correr as cortinas 
Da minha janela (mas ela não tem cortinas). 
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! 
O único mistério é haver quem pense no mistério. 
Quem está ao sol e fecha os olhos, 
Começa a não saber o que é o sol 
E a pensar muitas cousas cheias de calor. 
Mas abre os olhos e vê o sol, 
E já não pode pensar em nada, 
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos 
De todos os filósofos e de todos os poetas. 
A luz do sol não sabe o que faz 
E por isso não erra e é comum e boa. 
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? 
A de serem verdes e copadas e de terem ramos 
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, 
A nós, que não sabemos dar por elas. 
Mas que melhor metafísica que a delas, 
Que é a de não saber para que vivem 
Nem saber o que não sabem? 
"Constituição íntima das cousas"... 
"Sentido íntimo do Universo" ... 
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada. 
É incrível que se possa pensar em cousas dessas, 
É como pensar em razões e fins 
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores 
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão. 
Pensar no sentido íntimo das cousas 
É acrescentado, como pensar na saúde 
Ou levar um copo à água das fontes. 
O único sentido íntimo das cousas 
É elas não terem sentido íntimo nenhum. 
Não acredito em Deus porque nunca o vi. 
Se ele quisesse que eu acreditasse nele, 
Sem dúvida que viria falar comigo 
E entraria pela minha porta dentro 
Dizendo-me, Aqui estou
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos 
De que, por não saber o que é olhar para as cousas, 
Não compreende quem fala delas 
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.) 
Mas se Deus é as flores e as árvores 
E os montes e sol e o luar, 
Então acredito nele, 
Então acredito nele a toda a hora, 
E a minha vida é toda uma oração e uma missa, 
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. 
Mas se Deus é as árvores e as flores 
E os montes e o luar e o sol, 
Para que lhe chamo eu Deus? 
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; 
Porque, se ele se fez, para eu o ver, 
Sol e luar e flores e árvores e montes, 
Se ele me aparece como sendo árvores e montes 
E luar e sol e flores, 
É que ele quer que eu o conheça 
Como árvores e montes e flores e luar e sol. 
E por isso eu obedeço-lhe, 
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?), 
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, 
Como quem abre os olhos e vê, 
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, 
E amo-o sem pensar nele, 
E penso-o vendo e ouvindo, 
E ando com ele a toda a hora.

 

 

 

2.      Ricardo Reis

 

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

 

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Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. 
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos 
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. 
            (Enlacemos as mãos.) 

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida 
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, 
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado, 
            Mais longe que os deuses. 

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. 
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. 
Mais vale saber passar silenciosamente 
            E sem desassossegos grandes. 

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, 
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos, 
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, 
            E sempre iria ter ao mar. 

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, 
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, 
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro 
            Ouvindo correr o rio e vendo-o. 

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as 
No colo, e que o seu perfume suavize o momento — 
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada, 
            Pagãos inocentes da decadência. 

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois 
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, 
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos 
            Nem fomos mais do que crianças. 

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio, 
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. 
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio, 
            Pagã triste e com flores no regaço.

 

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           Sim

 

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.

 

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O que sentimos, não o que é sentido,

É o que temos. Claro, o Inverno triste

Como à sorte o acolhamos.

Haja Inverno na terra, não na mente.

E, amor a amor, ou livro a livro, amemos

          Nossa caveira breve.

 

 

 

3.      Álvaro de Campos

 

A PASSAGEM DAS HORAS

 

Sentir tudo de todas as maneiras,

Ter todas as opiniões,

Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,

Desagradar a si-próprio pela plena liberalidade de espírito,

E amar as coisas como Deus.

 

Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,

Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia

Que a dor real das crianças em quem batem

(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —

E porque é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)

Eu, enfim, que sou um diálogo contínuo

Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,

Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque

E faz pena saber que há vida que viver amanhã.

Eu, enfim, literalmente eu,

E eu metaforicamente também,

Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso

 

Às leis irrepreensíveis da Vida,

Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,

O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,

Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo

E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...

Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,

Sem personalidade com valor declarado,

Eu, o investigador solene das coisas fúteis,

era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso

E que acho que não faz mal não ligar importância à pátria

Porque não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz...

Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,

Como uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço,

Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,

Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,

Eu, o polícia que a olha, parado para trás na álea,

Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um colar com guizos,

Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina

Coada através das árvores do jardim público,

Eu, o que os espera a todos em casa,

Eu, o que eles encontram na rua

Eu, o que eles não sabem de si-próprios,

Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,

Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,

O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,

O lugar onde se encontram as duas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,

A cicatriz do sargento mal-encarado,

O sebo na gola do explicador doente que volta para casa,

A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,

E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...

Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,

Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,

Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,

O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,

O sacana do José que prometeu vir e não veio

E a gente tinha uma partida para lhe fazer...

Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...

Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão porque elas se abrem,

E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...

Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,

A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,

Sem que haja uma lápide no cemitério para o irmão de tudo isto,

E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer coisa...

Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,

E uso o monóculo para não parecer igual à ideia real que faço de mim,

Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,

Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,

Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...

Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,

O baú das iniciais gastas,

A intonação das vozes que nunca ouviremos mais —

Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo

E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.

A Brígida prima da minha tia,

O general em que elas falavam — general quando elas eram pequenas,

E a vida era guerra civil a todas as esquinas...

Vive le mélodrame où Margot a pleuré!

Caem folhas secas no chão irregularmente,

Mas o facto é que sempre é outono no outono,

E o inverno vem depois fatalmente,

E há só um caminho para a vida, que é a vida...

 

Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos

Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,

E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão

Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.

 

Todos os amantes beijaram-se na minha alma,

Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim

Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,

Atravessaram a rua, ao meu braço todos os velhos e os doentes,

E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.

 

(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,

Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,

Com as cabeças femininas coiffées de lin

E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...

Aquela que é o anel deixado em cima da cómoda,

E a fita entalada com o fechar da gaveta,

Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,

Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la...

Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,

Definitivamente para todo o resto do Universo,

E que os carros me passem por cima)

 

Fui para a cama com todos os sentimentos,

Fui souteneur de todas as emoções,

Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,

Troquei olhares com todos os motivos de agir,

Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,

Febre imensa das horas!

Angústia da forja das emoções!

Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,

A cadela a uivar de noite,

O tanque da quinta a passear à roda da minha insónia

O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,

A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,

Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,

Ó fome abstracta das coisas, cio impotente dos momentos,

Orgia intelectual de sentir a vida!

 

Obter tudo por suficiência divina —

As vésperas, os consentimentos, os avisos,

As coisas belas da vida —

O talento, a virtude, a impunidade,

A tendência para acompanhar os outros a casa,

A situação de passageiro,

A conveniência em embarcar lá para ter lugar,

E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,

E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

 

Poder rir, rir, rir despejadamente,

Rir como um copo entornado,

Absolutamente doido só por sentir,

Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,

Ferido na boca por morder coisas,

Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,

E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.

 

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         LISBON REVISITED (1923)

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) ­
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul ­ o mesmo da minha infância ­,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

 

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LISBON REVISITED (1926)
 

Nada me prende a nada.

Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.

Anseio com uma angústia de fome de carne

O que não sei que seja —

Definidamente pelo indefinido...

Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto

De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

 

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.

Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.

Não há na travessa achada o número da porta que me deram.

 

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.

Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.

Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.

Até a vida só desejada me farta - até essa vida...

 

Compreendo a intervalos desconexos;

Escrevo por lapsos de cansaço;

E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.

 

Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;

Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;

Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

 

Não, não sei isto, nem outra cousa, nem cousa nenhuma...

E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,

Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa

(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),

Nas estradas e atalhos das florestas longínquas

Onde supus o meu ser,

Fogem desmantelados, últimos restos

Da ilusão final,

Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,

As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.

 

Outra vez te revejo,

Cidade da minha infância pavorosamente perdida...

Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,

E aqui tornei a voltar, e a voltar,

E aqui de novo tornei a voltar?

Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram,

Uma série de contas-entes ligadas por um fio memória,

Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

 

Outra vez te revejo,

Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

 

Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,

Transeunte inútil de ti e de mim,

Estrangeiro aqui como em toda a parte,

Casual na vida como na alma,

Fantasma a errar em salas de recordações,

Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem

No castelo maldito de ter que viver...

 

Outra vez te revejo,

Sombra que passa através de sombras, e brilha

Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,

E entra na noite como um rastro de barco se perde

Na água que deixa de se ouvir...

 

Outra vez te revejo,

Mas, ai, a mim não me revejo!

Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,

E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -

Um bocado de ti e de mim!...

 

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ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado---,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

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            POEMA EM LINHA RETA

 

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

 

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Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

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TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

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      ODE MARÍTMA

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É – sinto-o em mim como o meu sangue -
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

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A liberdade, sim, a liberdade!

A verdadeira liberdade!

Pensar sem desejos nem convicções.

Ser dono de si mesmo sem influência de romances!

Existir sem Freud nem aeroplanos,

Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!

A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais

A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!

Como o luar quando as nuvens abrem

A grande liberdade cristã da minha infância que rezava

Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim...

A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,

A noção jurídica da alma dos outros como humana,

A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez

Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma

E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!

Passos todos passinhos de criança...

Sorriso da velha bondosa...

Apertar da mão do amigo [sério?]...

Que vida que tem sido a minha!

Quanto tempo de espera no apeadeiro!

Quanto viver pintado em impresso da vida!

Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,

Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote

Da casa do campo da minha velha infância...

Eu bebia e ele chiava,

Eu era fresco e ele era fresco,

E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.

Que é do púcaro e da inocência?

Que é de quem eu deveria ter sido?

E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?

 

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Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.

Sentir tudo ele todas as maneiras.

Sentir tudo excessivamente

Porque todas as coisas são, em verdade excessivas

E toda a realidade é um excesso, uma violência,

Uma alucinação extraordinariamente nítida

Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,

O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas

Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,

Quanto mais personalidades eu tiver,

Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,

Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,

Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,

Estiver, sentir, viver, for,

Mais possuirei a existência total do universo,

Mais completo serei pelo espaço inteiro fora,

Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,

Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,

E fora d'EIe há só EIe, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,

Cada alma é um corredor-Universo para Deus,

Cada alma é um rio correndo por margens de Externo

Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.

Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,

Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos

Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho

E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!

Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande.

As coisas, ele braços cruzados sobre o peito, reparam

Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos

Que as vê como vagos vultos nocturnos na noite negra.

Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.

Todo o Mundo com a sua forma visível do costume,

Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso.

Escuto-o. e no meu coração um grande pasmo soluça.

Sursum corda! Ó Terra, jardim suspenso, berço

Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!

Mãe verde e florida todos os anos recente,

Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal

Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adónis

Num rito anterior a todas as significações,

Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!

Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,

Grande voz acordando em cataratas e mares,

Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,

Em cio de vegetação e florescência rompendo

Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso

À tua própria vontade transtornadora e eterna!

Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,

Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,

Mãe caprichosa que faz vegetar e secar.

Que perturba as próprias estações e confunde

Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu   sou um hino!

Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica íntima

Volteia serpenteando ficando como um anel

Nevoento, de sensações reminiscidas e vagas,

Em torno ao teu vulto interno túrgido e fervoroso.

Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente

Meu coração a ti aberto!

Como uma espada trespassando meu ser erguido e extático,

Intersecciona com o meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,

Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre.

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito

Tendendo em todas as direcções para todos os lados do espaço,

A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une

E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim

Não passem de mim, não quebrem meu ser, não partam meu corpo,

Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira

Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,

Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.

Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.

Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,

No vasto chão supremo que não está em cima nem em baixo

Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos

Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.

Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,

Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo

De chamas explosivas buscando Deus e queimando

A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,

A minha inteligência limitadora e gelada.

Sou uma grande máquina movida por grandes correias

De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,

O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,

E nunca parece chegar ao tambor donde parte...

Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito

Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,

Cruzando-se em todas as direcções com outros volantes,

Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço

Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.

Dentro de mim estão presos e atados ao chão

Todos os movimentos que compõem o universo,

A fúria minuciosa e (...) dos átomos

A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,

A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,

E a chuva como pedras atiradas de catapultas

De enormes exércitos de anões escondidos no céu.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio

De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.

Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia. sacode,

Freme, treme, espuma, venta, viola, explode.

Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,

Se com todo o meu corpo todo o universo e a vida,

Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,

Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos

Sobrevive-me em minha vida em todas as direcções!

 

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Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,

Perante esta única realidade terrível — a de haver uma realidade,

Perante este horrível ser que é haver ser,

Perante este abismo de existir um abismo,

Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,

Ser um abismo por simplesmente ser,

Por poder ser,

Por haver ser!

— Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,

Tudo o que os homens dizem,

Tudo quanto construem, desfazem ou se construi ou desfaz através deles.

Se empequena!

Não, não se empequena... se transforma em outra coisa —

Numa só coisa tremenda e negra e impossível,

Uma coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino —

Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino.

Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,

Aquilo que subsiste através de todas as formas

De todas as vidas, abstractas ou concretas,

Eternas ou contingentes,

Verdadeiras ou falsas!

Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,

Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar porque é um tudo,

Porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa!

Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,

E é com minhas ideias que tremo, com a minha consciência de mim,

Com a substância essencial do meu ser abstracto

Que sufoco de incompreensível,

Que me esmago de ultratranscendente,

E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,

Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!

Cárcere do Ser, não há libertação de ti?

Cárcere de pensar, não há libertação de ti?

Ah, não, nenhuma — nem morte, nem vida, nem Deus!

Nós, irmãos gémeos do Destino em ambos existirmos,

Nós, irmãos gémeos dos Deuses todos, de toda a espécie,

Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma sombra,

Sombra sejamos, ou sejamos luz, sempre a mesma noite.

Ah, se afronto confiado a vida, a incerteza da sorte,

Sorridente, impensando, a possibilidade quotidiana de todos os males,

Inconsciente o mistério de todas as coisas e de todos os gestos,

Porque não afrontarei sorridente, inconsciente, a Morte?

Ignoro-a? Mas que é que eu não ignoro?

A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo,

São mistérios menores que a Morte? Como se tudo é o mesmo mistério?

E eu escrevo, estou escrevendo, por uma necessidade sem nada.

Ah, afronte eu como um bicho a morte que ele não sabe que existe!

Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,

Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,

Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,

Porque é preciso existir para se criar tudo,

E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,

E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses.

 

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Aquela falsa e triste semelhança

Entre quem julgo ser e quem eu sou.

Sou a máscara que volve a ser criança,

Mas reconheço, adulto, aonde estou,

 

Isto não é o Carnaval, nem eu.

Tenho vontade de dormir, e ando.

O que passa, ondeando, em torno meu,

Passa (...)

 

Dormir, despir-me deste mundo ultraje,

Como quem despe um dominó roubado.

Despir a alma postiça como a um traje.

 

Tenho náusea carnal do meu destino.

Quase me cansa me cansar. E vou,

Anónimo, (...) menino,

Por meu ser fora à busca de quem sou.

 

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Começo a conhecer-me. Não existo.

Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,

Ou metade desse intervalo, porque também há vida...

Sou isso, enfim...

Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulho de chinelas no corredor.

Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.

É um universo barato.

 

 

 

4.      Fernando Pessoa

 

AUTOPSICOGRAFIA

 

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

 

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

 

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

 

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ISTO

 

Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo, 
O que me falha ou finda, 
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda. 
Essa coisa que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir! Sinta quem lê!

 

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O amor, quando se revela,
não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente.
Cala: parece esquecer.

Ah, mas se ela adivinhasse,
se pudesse ouvir o olhar, 
e se um olhar lhe bastasse
pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
quem quer dizer quanto sente
fica sem alma nem fala,
fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe 
o que não lhe ouso contar,
já não terei que falar-lhe
porque lhe estou a falar...

 

___________________________________________________

 

O amor que eu tenho não me deixa estar

Pronto, quieto, firme num lugar

Há sempre um pensamento que me enleva

E um desejo comigo que me leva

Longe de mim, a quem eu amo e quero.

Inda de noite, quando durmo, espero

A manhã em que torne a vê-la e amá-la.

……

 

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Não sei quantas almas tenho. 
Cada momento mudei. 
Continuamente me estranho. 
Nunca me vi nem acabei. 
De tanto ser, só tenho alma. 
Quem tem alma não tem calma. 
Quem vê é só o que vê, 
Quem sente não é quem é, 

Atento ao que sou e vejo, 
Torno-me eles e não eu. 
Cada meu sonho ou desejo 
É do que nasce e não meu. 
Sou minha própria paisagem; 
Assisto à minha passagem, 
Diverso, móbil e só, 
Não sei sentir-me onde estou. 

Por isso, alheio, vou lendo 
Como páginas, meu ser. 
O que sogue não prevendo, 
O que passou a esquecer. 
Noto à margem do que li 
O que julguei que senti. 
Releio e digo : "Fui eu?" 
Deus sabe, porque o escreveu.

 

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EROS E PSIQUE

 

... E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

 

Do ritual do grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal

 

Conta a lenda que dormia

Uma Princesa encantada

A quem só despertaria

Um Infante, que viria

De além do muro da estrada

 

Ele tinha que, tentado,

Vencer o mal e o bem,

Antes que, já libertado,

Deixasse o caminho errado

Por o que à Princesa vem.

 

A Princesa Adormecida,

Se espera, dormindo espera.

Sonha em morte a sua vida,

E orna-lhe a fronte esquecida,

Verde, uma grinalda de hera.

 

Longe o Infante, esforçado,

Sem saber que intuito tem,

Rompe o caminho fadado.

Ele dela é ignorado.

Ela para ele é ninguém.

 

Mas cada um cumpre o Destino —

Ela dormindo encantada,

Ele buscando-a sem tino

Pelo processo divino

Que faz existir a estrada.

 

E, se bem que seja obscuro

Tudo pela estrada fora,

E falso, ele vem seguro,

E, vencendo estrada e muro,

Chega onde em sono ela mora.

 

E, inda tonto do que houvera,

À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

E vê que ele mesmo era

A Princesa que dormia.

 

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SÁ CARNEIRO

 

                Nesse número do Orpheu que há-de ser feito

                   Com rosas e estrelas em um mundo novo.

 

Nunca supus que isto que chamam morte

Tivesse qualquer espécie de sentido...

Cada um de nós, aqui aparecido,

Onde manda a lei e a falsa sorte,

 

Tem só uma demora de passagem

Entre um comboio e outro, entroncamento

Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento;

Mas, seja como for, segue a viagem.

 

Passei, embora num comboio expresso

Seguisses, e adiante do em que vou;

No términus de tudo, ao fim lá estou

Nessa ida que afinal é um regresso.

 

Porque na enorme gare onde Deus manda

Grandes acolhimentos se darão

Para cada prolixo coração

Que com seu próprio ser vive em demanda.

 

Hoje, falho de ti, sou dois a sós.

Há almas pares, as que conheceram

Onde os seres são almas.

 

Como éramos só um, falando! Nós

Éramos como um diálogo numa alma.

Não sei se dormes [...] calma,

Sei que, falho de ti, estou um a sós.

 

É como se esperasse eternamente

A tua vida certa e conhecida

Aí em baixo, no café Arcada —

Quase no extremo deste [...]

 

Aí onde escreveste aqueles versos

Do trapézio, doriu-nos [...]

Aquilo tudo que dizes no «Orpheu».

 

Ah, meu maior amigo, nunca mais

Na paisagem sepulta desta vida

Encontrarei uma alma tão querida

Às coisas que em meu ser são as reais.

 

[...]

 

Não mais, não mais, e desde que saíste

Desta prisão fechada que é o mundo,

Meu coração é inerte e infecundo

E o que sou é um sonho que está triste.

 

Porque há em nós, por mais que consigamos

Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,

Um desejo de termos companhia —

O amigo como esse que a falar amamos.

 

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MAR PORTUGUÊS

 

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

 

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

 

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    OCIDENTE

 

Com duas mãos — o Acto e o Destino —

Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu

Uma ergue o facho trémulo e divino

E a outra afasta o véu.

 

Fosse a hora que haver ou a que havia

A mão que ao Ocidente o véu rasgou,

Foi alma a Ciência e corpo a Ousadia

Da mão que desvendou. 

Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal

A mão que ergueu o facho que luziu,

Foi Deus a alma e o corpo Portugal

Da mão que o conduziu.